INSÍGNIA E LEMA

INSÍGNIA E LEMA
CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

ALMOÇO-CONVÍVIO NO BARREIRO

Almoço-Convívio no Clube dos Fuzileiros, no Barreiro, em 15 de Setembro último, de alguns Camaradas do Batalhão de Caçadores 2872. Da CCS (Companhia de Comando e Serviços): Arvelos, Medroa e Neves; da Companhia de Caçadores 2505: Fernando Santos; e da 2506: Fernando Temudo, Boavista, Manuel Freitas, Carvalho, Marques, Aleixo e Carlos Jorge Mota. O terreno encontrava-se já todo previamente desminado, não houve emboscadas - os Fuzos montaram a devida segurança -, e, se tiros houve, foram todos certeiros, pois nada sobrou nos pratos.Trotil, perdão, tintol, foi muito usado, mas sem barulho, tudo feito suavemente, até porque nesta Coluna encontrava-se presente uma senhora ...












Carlos Jorge Mota

terça-feira, 8 de setembro de 2015

ZENZA DO ITOMBE - 2ª OPERAÇÃO (ENTRADA PELO SUL): NA GUERRA O INIMIGO É UM SER HUMANO COMO EU

Encrustada na parte sudoeste dos Dembos, onde a Floresta é muito densa e bastante húmida, a zona do Zenza do Itombe era também um santuário da Guerrilha de elementos da FNLA e do MPLA, que se guerreavam entre si, mas que consideravam seu principal Inimigo o Exército Português.
Após uma primeira Operação onde a Companhia 2506, a minha Companhia, também se incorporou com entrada pelo norte da Mata - já relatada neste Blogue com a designação de 1ª Operação  -,  juntamente com outras Unidades dispersas por aéreas mais alargadas, e na sequência de outras Operações já ocorridas no antecedente, à nova Operação Militar foi chamado o nosso Batalhão, sendo atribuída à minha Companhia a nomadização numa vasta área, desta vez com entrada pelo lado sul da densa mata.

Já desde a Coutada de Mucusso, quando, principalmente de noite, se ouvia um tiro isolado, começou a instalar-se no pessoal a ideia que o Palaio via turras em todo o lado, e, se tiro noturno soasse, tinha sido, com toda a certeza, o Palaio, nos seus desmandos visionários. O Palaio não dormia em serviço e tinha revelado já grande sentido de orientação, pois conseguiu acertar o azimute para o Aquartelamento, em digressão sob o luar, quando outros, também perdidos, só chegaram ao outro dia e com sol já bem alto.

Saídos do Grafanil e entrados já na mata densa, bivacámos em local previamente determinado, junto à margem do Rio Zenza. Juntamente connosco, mas chegada depois, instalou-se uma Bataria de Artilharia, com várias Peças de Fogo, que, de manhãzinha, e em momento rigorosamente aprazado, começou a bombardear áreas a norte. Mas, como a missão da nossa Companhia era fazer uma nomadização, tentando empurrar os turras para zonas onde se haviam já instalado, emboscadas, outras unidades militares, no sentido de os capturar ou neutralizar, a nossa saída do improvisado aquartelamento, para dar início à nossa tarefa de alguns dias, forçosamente teve que ocorrer muitíssimo cedo, ainda o sol não raiava.



Ao terceiro dia, numa progressão em “bicha de pirilau”, ouve-se um tiro: foi o Palaio - pensamento instintivo generalizado deverá ter ocorrido na mente de todos.  
Sendo eu o cerra-fila, a dado momento diz-me, numa voz baixa mas firme, o Camarada que segue à minha frente: -“Palaio, está ali um gajo pendurado numa árvore”. –“Onde?”, retorqui eu, no mesmo tom –“Ali, pá, naquela árvore”, e aponta. Talvez, por se ver descoberto, o guerrilheiro, posto-avançado do seu grupo e cuja missão era de vigia, dispara a sua arma, com dois cartuchos, na nossa direcção, uma Caçadeira cujos estragos, em distância curta, são muitíssimo poderosos, não só pela dispersão da carga, que abre em feixe e atinge mais homens, como pela potência do impacto num único alvo. Só que, como o Palaio nunca dormiu em serviço, foi também rápido e, conservando eu a arma permanentemente em posição de fogo, foi só direcionar instintivamente a minha G-3, apertar o gatilho num único tiro e … o homem cai da árvore, seriamente ferido, largando a Caçadeira. Logrou-se, pois, a sua eventual, mas quase certa, pretensão de disparar sobre os últimos homens da Coluna, para depois fugir de imediato. A Coluna estancou imediatamente e, na salvaguarda de emboscada reactiva por parte deles, posiciona-se subitamente na adequada formação de combate. Momentos expectantes, mas rapidamente se concluiu que, pelo menos aparentemente, mais nenhum guerrilheiro se encontraria activo nas redondezas próximas ou disponível para combater. Levanto-me e constato que estou ligeiramente ferido com estilhaços nas pernas, sem gravidade, e o Camarada da frente com leves estilhaços no peito, nada de grave também. Verificou-se que o guerrilheiro se encontra ferido no abdómen com alguma gravidade, mas não em situação de emergência. Prontamente socorrido pelo Enfermeiro da Coluna, fica, passados uns bons minutos, em condições físicas de andar pelo seu pé, embora dum modo dificultoso. Recusou-se a falar fosse o que fosse, demostrou não ter qualquer medo e olhava-nos com algum desdém, revelando grande coragem militar. Como entretanto escureceu totalmente e a Operação tinha que continuar ele foi instado a progredir connosco, sob vigilância apertada, ficando o pessoal sob o comando do Furriel Adário responsável por essa tarefa. Como por vezes abrandasse a marcha (e seria difícil avaliar se o fazia propositadamente e sem razão aceitável ou não), para não atrasar a progressão, era-lhe exibida uma Faca de Mato, ferramenta que ele, como militar, compreendia perfeitamente ser necessário utilizar se se tornasse um obstáculo à manutenção da cadência de progressão exigida. Chegada a hora de pernoitar, e após se montar a indispensável segurança nas condições concretas da Operação, torna-se exigível a especial guarda deste prisioneiro. Essa missão foi atribuída ao pessoal do Furriel Temudo. Este, com receio de que, pelo cansaço, os seus homens mais próximos ao prisioneiro pudessem adormecer, a G-3 de cada um deles foi colocada em local mais afastado pois o prisioneiro, eventualmente desperto, poderia, num acto de suicídio, arrancar uma arma das mãos dum militar nosso e fazer estragos, antes de ser abatido. Entretanto, e no intuito de salvar a vida deste homem, porque, mesmo Inimigo, era um ser humano, acrescido o facto de poder ser útil em eventuais informações que resolvesse revelar, pelas nossas Transmissões foi accionada a necessária evacuação por helicóptero. Manhã cedo, e munido o piloto das respectivas coordenadas, o Alouette III paira sobre as nossas cabeças, em mata cerrada. Improvisa-se um ponto de aterragem. Uma pequena ilhota, junto a um rio, para a qual foi preciso atravessar através de canoa improvisada, foi o local escolhido. O héli descola rumo ao Hospital Militar em Luanda e a Operação prossegue por mais um dia. Terminada esta e regressados ao Campo Militar do Grafanil, pessoal houve, nomeadamente Graduados, que resolveu ir ao Hospital averiguar o estado de saúde do prisioneiro. E eis que brota espontaneamente o que existe de mais nobre num coração humano: um prisioneiro inimigo a ser visitado pelos seus captores. Formou-se, desde aquele momento, uma relação especial, quiçá de alguma amizade, entre os elementos presentes. Foi notória a evolução de confiança que o guerrilheiro passou a depositar nas nossas Forças Armadas, com contagiante disponibilidade de colaboração, talvez por ter sentido que a sua vida foi poupada e até depois salva por aqueles sobre os quais abriu fogo.



A Guerra tem desta coisas, aparentemente absurdas, mas só quem nela participa as consegue entender no seu pleno. Felizmente o homem sobreviveu e, já completamente recuperado, passou a ser mais um cidadão perfeitamente integrado na Sociedade de então.
CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA, era e Lema do nosso Batalhão. Deu-se, pois, cumprimento ao seu desígnio.


Armando Mendes Palaio (Narrativa)
Carlos Jorge Mota (Redacção)
Setembro 2015

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

ZENZA DO ITOMBE - 1ª OPERAÇÃO (ENTRADA PELO NORTE) - Narração 3ª

(Continuação)

Hoje, 11 de Agosto de 2015, estou sentado numa mesa do Centro Comercial Spacio, nos Olivais, em Lisboa. Desfruto momentos de felicidade na companhia dos meus Netos. A Inês, de sete anos, e o Miguel, de 13. Ambos envolvidos no jogo que passa no tablet ignoram a minha companhia. Momentos antes consegui tirar fotografias, desafiando a paciência deles por terem interrompido o jogo. Tirei bastantes, como se fossem as últimas. Há dois meses, passei uma semana no Hospital. Dessa já me safei. Agora, aguardando o resultado de meia dúzia de exames médicos, vou tentando arranjar concentração para conseguir recuar no tempo perto de cinquenta anos, para acabar de escrever esta terceira parte da "Operação no Zenza". Tenho setenta anos. Neste período de tempo, o Mundo mudou muito. Mudou demasiado! Olho para a pequena máquina fotográfica compacta que tenho à frente. Quando damos conta, estão duzentas ou mais fotos e inúmeros vídeos à nossa disposição. Naquele tempo, comprar um rolo de vinte e quatro fotos, mandar revelar e obter fotografias, ficava caro. Comprar um rolo de trinta e seis slides era despesa que abalava o vencimento dos graduados que seriam os únicos a poderem efectuar tais gastos. Sem esquecer o preço elevado de uma boa máquina fotográfica, o grande sonho que bem poucos poderiam tornar realidade. Quem não queria voltar a Portugal com uma Canon ou Yashica?  E, também, com um bom e moderno relógio que, para ser comprado, deitava abaixo um vencimento mensal? Hoje, há relógios por todo o lado: nos tabletes, telemóveis, nas  réguas e calculadoras da escola, nos brinquedos  e até em ofertas conjuntamente na compra de outros artigos. É vulgar uma senhora dispor de dez relógios de pulso de variados tamanhos e desenhos, que escolhe para uso diário a condizer com as suas indumentárias. Relógios digitais que funcionam com exactidão e estão ao alcance de todos. Eu também não fugia ao desejo de comprar um bom relógio. Andava com um "Aureos" desde os treze anos. Era hábito, quando já éramos homenzinhos, alguém nos oferecer um relógio. No meu caso foi o meu irmão mais velho treze anos que me deu o seu, quando comprou um novo para ele. Uma semana antes do início desta "Operação no Zenza", em Luanda, ao ver uma montra, não resisti àquele relógio marca Seiko. Com bracelete metálica, automático (a corda dava-se com o movimento do pulso) e de ponteiros luminosos. Era o relógio que eu desejava e queria trazer para Portugal. Ainda hoje se fabrica no Japão este modelo clássico da Seiko e encontra-se à venda numa relojaria da Baixa de Lisboa, pelo preço de cento e oitenta euros. Mas, por razões que o destino traçou, não ficaria muito tempo com ele.
Esta " Operação no Zenza " obrigou todos os militares envolvidos directamente a dormirem sete noites no "mato". Na terceira, como nas anteriores, depois de deitados no chão, tirei o relógio do pulso que ficou por debaixo do saco-mochila que servia de almofada improvisada. O motivo de tirar o relógio é porque este tinha de ficar "escondido" devido ao mostrador e ponteiros serem luminosos. Naquelas noites escuras como breu, o relógio podia tornar-se num indicativo para o inimigo, caso viéssemos a ser seguidos. Como de costume, ainda de madrugada, já estávamos a pé para quando os primeiros raios de sol despontassem pudéssemos abandonar rapidamente o local da pernoita. Com a pressa e o ter que cumprir determinados procedimentos relacionados com a minha Secção, não  me lembrei do relógio. Não mais de cinco minutos após o início da marcha da coluna, dei por falta dele. Então, alcancei o Capitão e pedi-lhe para parar a Coluna, enquanto, a correr, eu iria buscar o relógio. Disse-me que não parava a coluna e que não me autorizava a ir buscar o relógio. Bem perto estava o Furriel Glória que ouviu a conversa. Fiquei parado e o Glória também como que a fazer-me companhia, enquanto iam passando por nós, em linha, os restantes homens da Coluna. "Agarrei " dois da minha Secção, o Galhanas e o Siquenique. Pedi-lhes para irem comigo encontrar o relógio. Responderam-me que estavam prontos para me acompanhar até ao local. No entanto, o Galhanas foi dizendo: "a gente vai lá consigo ... mas o meu Furriel ... veja os riscos ... relógios há muitos ... e o Capitão pode dar pela sua falta". O Glória reforçou: "sabes que voltar atrás é contra as regras ... além disso, tu, mesmo que lá vás, não consegues encontrar o relógio. O chão está todo pisado com os pés do pessoal a passarem por cima ... estás maluco... esquece a porra do relógio e vamos sair daqui que já perdemos o contacto com a Coluna”. Há cerca de três meses, o Glória, que vive no Algarve, ainda se lembra do "relógio perdido" e, em conversa telefónica, falou desse episódio ao Mota. 
"Avô! ... Avô!... Estás distraído?..são horas de almoçarmos", disse o Miguel, enquanto se levantava e fechava o tablet . - "Eu quero um hamburguer", disse a Inês. Na mesa ficava uma garrafinha de água, quase cheia, desprezada, que em breve iria para o lixo. Como me lembrava da importância que podia representar aquela água, agora sem valor especial. Vi homens desesperados com sede e capazes de lutar pela posse daquela pouca água. Chegou a noite. Foi um dia bem passado. Estou em casa, no silêncio. Tenho por companhia um copo de whisky. Chegou o momento de viajar no tempo. Estou mais uma vez na Guerra. Custa-me sempre iniciar esta viagem, mas, depois de lá estar, não quero de lá sair. Estamos, novamente, nas matas do Zenza.
Agora, na "frente", onde "o coração bate mais forte", vamos a caminho da picada onde estariam os "nossos" condutores-auto, para nos transportar para o aquartelamento no Grafanil. O pessoal estava "estafado" e alguns com dificuldades nos pés. O  incansável Enfermeiro Soares, acompanhado do seu saco de campanha que, ao invés da bolsa de Pandora (*), logo que o abria, aparecia, em primeiro lugar, a "esperança",   saindo, em seguida, todos os componentes mágicos que faziam milagres nas suas mãos hábeis e instruídas. Por cima do Soares, pairando como nuvem permanente, podia ver-se, no aquartelamento, o responsável pela Enfermaria, o nosso companheiro Furriel-Enfermeiro Mineiro, a quem muitos deviam tanto. Agora, aproveitando uma breve paragem do pessoal para descanso,  distribuía comprimidos a todos, para serem metidos nos cantis a fim de desinfectar a água.A mim também  me deu dois comprimidos de quinino para o paludismo, que me andava a rondar. Era preciso andar a corta-mato as cinco a seis horas que faltavam, em descampado, debaixo de um sol abrasador, que haviam de parecer um eternidade. Dos homens da minha Secção, os dois competentes Primeiros-Cabos, nasceram na região Centro e Norte. Os outros homens, todos  Alentejanos. Estes, habituados a andarem nos campos, possuíam grande resistência e espírito de sacrifício e um experimentado sentido de orientação. Rudes, duros, leais, um ou outro mais indisciplinado, amantes da pinga. Companheiros dos momentos adversos, não conheciam a palavra recuar.

As obrigações  individuais dos homens da minha Secção foram estabelecidas com naturalidade. A já muita experiência acumulada nas mais diversas intervenções a que fomos chamados facilitava o trabalho em equipa. De facto, tratava-se mesmo de um trabalho em equipa. Competia-me a organização do grupo, a indicação dos objectivos a concretizar e  a distribuição de tarefas tendo em atenção as características e conhecimentos pessoais de cada um. Assim, para fazer face às exigências do momento, cabia-me indicar a direcção a seguir, mediante a leitura da bússola, tendo presente o azimute indicado pelo Capitão; o Primeiro Cabo Couto controlava no seu relógio o tempo de andamento, paragem, descanso e reinício; o Siquenique, de estatura média, regulava a "passada" de forma a proporcionar um andamento o mais constante possível, no sentido de permitir comodidade aos homens que se deslocavam em fila. Se não se ligar a este  pormenor sem importância aparente e, por exemplo, o homem da frente dobrar o passo numa descida pronunciada e longa (embalar), levando os outros que seguem a fazer o mesmo, acontece que, numa coluna de setenta homens, os  últimos obrigam-se a dar corridas para se manterem à distância certa entre eles, originando que o equipamento pessoal de cada um, de muitos quilos, se movimente, magoando, sobretudo, as costas; os outros seguem com atenção redobrada ao que se passa em volta, tendo sempre presente que o Inimigo nos pode surpreender a qualquer momento. Há consciência no grupo que, por irmos na "frente" da coluna militar, cada homem tem responsabilidades acrescidas, pois o nosso Capitão e todos que nos seguem confiam no nosso desempenho. 

Primeira hora:
Vamos avançando. Na nossa frente o intenso e constante barulho da floresta/selva, onde se destaca o chilrear dos pássaros, que vai cessando conforme vamos andando. A progressão a corta-mato em floresta, quase sempre aberta, não apresenta obstáculos importantes, no entanto, a vegetação rasteira é alta e densa, dificultando o movimento dos pés. Apenas alguns desvios são feitos quando se nos deparam núcleos de floresta compacta ou, noutras vezes,  para permitir melhor piso aos homens integrados na coluna, obrigando estas manobras, logo que terminadas, às correções da direcção que  estávamos a seguir (correcção de deriva) a fim de retomar a linha de rumo (azimute) inicial. E sempre se irão usar estes procedimentos de navegação até se alcançar a picada. 

Segunda hora:
Lá íamos prosseguindo a nossa caminhada iniciada desde os primeiros raios do Sol e, pelas 11 horas, passámos para a frente da Coluna, com os nossos dois cantis devidamente abastecidos logo de manhã bem cedo, num braço de rio. Não nos voltaríamos a abastecer até chegarmos às viaturas. Parámos os habituais dez minutos para descanso, conseguindo uma meia sombra debaixo de árvores com sol quase a pique. Foi quando ouvimos uma voz familiar vinda de entre os altos  arbustos: " Bom dia Temudo... tens horas certas?" seguiu-se uma gargalhada infernal e o silêncio. Sem dúvida, aquela voz era a do Glória que veio gozar comigo, lembrando-me que tinha perdido o relógio. Continuávamos a andar e íamos falando para ajudar a passar o tempo. O Galhanas, que por hábito seguia atrás de mim, lançou esta frase para o ar : "Essa coisa da bússola faz-me confusão. Ela é que manda nisto tudo". O Siquenique adiantou: "E o ponteiro mexe sozinho... e, pelo que se vê, aponta sempre para o mesmo lado ... mesmo que a gente se volte ao contrário com ela. Não percebo onde vai arranjar força. Olhem  ... os ponteiros de um relógio mexem mas temos de dar corda". O Feiteirona deu a explicação: " Aquilo não é um ponteiro, é uma agulha... e vai buscar à natureza a força para poder andar à roda... é como o íman ... e a agulha vira-se para o Norte". O Siquenique continuou: "Seja isso ... mas há outra  coisa que aqui o Furriel tem de explicar à gente: quando há pouco tempo a gente vinha na Berliet lá das terras de baixo... vossemecê, que ia sentado ao lado do condutor, quando olhava para a bússola para fazer as suas contas, levantava-se sempre e depois tornava-se a sentar ... fiquei a achar isso esquisito ". A resposta do Arvanas não se fez esperar : " Então... mas é fácil de saber ... na tropa tudo tem posto... menos nós, que somos soldados ... a bússola deve ter, para aí, o posto de Tenente... e o Furriel, quando tem de falar com ela, tem de se levantar por respeito". No meio de risos generalizados, o Couto veio dar o seu esclarecimento: "Tu estás a gozar porque não sabes a razão! Vocês não estudaram estas coisas. O Furriel levanta-se para a bússola ganhar distância da carroçaria da Berliet, que é de ferro. Se ele fizer as medições sentado, a agulha fica baralhada com a carroçaria de ferro, que também atrai a agulha ... e vai indicar o Norte para outro lado qualquer ... e lá se vai o pessoal perder e sem chegar ao sítio que quer ir ". O Arvanas esperou uns segundos e disse : " Bom, se o Furriel ficou calado é porque estás a falar certo ... realmente tens estudos... por isso és Cabo". O Couto não ficou satisfeito e respondeu: " Não sou Cabo... sou Primeiro-Cabo ". O Siquenique perguntou: "O que é que ele quer dizer" ?  O Galhanas explicou: "O Couto tem razão ... há Segundos-Cabos ... conheço um na Guarda Republicana". 

Terceira hora:
O calor aumenta, mas temos de continuar a aguentar. Começo a olhar com ansiedade para a água que me  resta. É mais que certo que  não vai chegar até à picada. Como estará a água dos outros? Os homens mentem quando lhes perguntam sobre a água que ainda possuem. Naquele momento é a riqueza que cada um tem e não há dinheiro que a compre. Se perguntarmos, a resposta é sempre a mesma: só tenho um bocadinho. Na minha Secção, os homens Alentejanos, habituados a andar desde pequenos nos campos e a lidar com as  temperaturas altas de Verão, sabem beber a água. Pequenos goles, sabiamente intervalados, permitem-lhes uma gestão perfeita da água disponível que, no entanto, também se vai acabando. Eu sentia-me bem ... até me sentir mal (passe o sentido hilariante da frase). Repentinamente, sem qualquer aviso, começo a ver o caminho desfocado, sem cores e a cabeça muito tonta. Sinto-me agarrado no braço pelo forte Galhanas que vinha atrás de mim e que deu o alarme: "Atenção pessoal... o Furriel vem passando mal ... alguém o alivie da arma e das cartucheiras. Já mais leve e amparado no Galhanas continuávamos a andar. Perguntei ao Couto quando tempo faltava para o descanso. Respondeu-me de imediato : " Dez minutos ... tem de aguentar dez minutos". Perguntei: "Alguém tem uma “ucal"? (a Ração de Combate trazia uma embalagem de lata, que nós chamávamos de "ucal", que continha uma mistura açucarada de leite com cacau, para beber ao pequeno almoço). De imediato, o Siquenique abriu o seu saco-mochila e entregou-me uma "ucal", que logo bebi. Rapidamente comecei a voltar à normalidade. Chegou o período para descanso. Agradeci ao Siquenique e fiquei admirado por ele ainda a não ter bebido. A resposta veio do Arvanas : " Ele não bebe a “ucal”... e eu também não ... às vezes, quando abro a ração de combate, dou-lhe logo um chuto, para não me andar aqui a pesar no saco ... só que a gente descobriu que andam por aí uns meninos de cidade que gostam ... então, a gente troca a “ucal” por meio maço de cigarros decentes (o Arvanas e muitos Soldados que tinham o vício de fumar, porque o vencimento mensal era muito pequeno, fumavam o que o povo chamava de  “mata-ratos”.  Eram uns cigarros finos, mais baratos, mas de fumo agradável. Havia até endinheirados que os preferiam, ou porque gostassem ou por moda ou porque constava que prejudicava menos a saúde. As duas marcas que se vendiam mais: Definitivos e Provisórios. Dou-lhe a minha *ucal*. Pode ainda precisar dela. Aqui o compadre Siquenique gosta mais de uns goles de bagaço ao acordar ". O Siquenique esclareceu logo :" Goles não! O bagaço deve-se beber de uma assentada!". 







Quarta hora
Com o tempo de descanso a terminar, chega-se à frente, até nós, o Primeiro-Cabo Silva, homem robusto e sem medo. O Capitão, nas "operações" militares em que participava, não dispensa a sua presença junto dele. Por isso ficou com a alcunha de "o guarda costas do Capitão" Chegou-se perto de mim e disse-me : " Furriel Temudo ... o nosso Capitão manda que vamos mais devagar", e logo se retirou. Todos de pé, vamos continuar e ter em atenção a ordem recebida. O calor não abrandava e o chão mais quente que nunca transmitia o calor aos pés. Aliviei os atacadores pois parecia que os pés deixaram de caber nas botas. A minha preocupação pessoal era poupar a água. Posteriormente e já em ambiente de algum acolhimento, poderíamos dizer : - “como é que aquela água mal saborosa sabia tão bem”!. Mais tarde, viemos a saber que o Capitão, nesta quarta hora, se havia ressentido de uma lesão antiga nas costas, pelo que o Silva se ofereceu para levar consigo o conteúdo da sua mochila, tendo o cuidado de encher a mochila do Capitão, agora vazia, com  folhas juntamente com bocados de cartão das embalagens das rações de combate, para que, no caso de um eventual encontro com o inimigo, este não o pudesse identificar como  Comandante. Tinha decidido comer a última lata de conserva da Ração de Combate, uma lata de atum, na próxima paragem para descanso. A "ucal" que o Arvanas me ofereceu guardava-a para beber mais adiante, prevenindo outro desfalecimento que me pudesse suceder. De repente, aconteceu novo imprevisto: o Feiteirona caiu no chão. Mas era assunto sério. Não se podia levantar. Não deixava que ninguém lhe tocasse. O entendimento das suas palavras foi claro e dramático: " Não me toquem ! Ninguém me tente levantar !  Acabou!  Não dou mais um passo! Não consigo andar mais! " Sentado no chão, agarrava na mão uma poderosa e ameaçadora pedra. Homem extremamente resistente, companheiro certo de tantas missões, agora, neste momento, naquela situação que nós não compreendíamos. Meia dúzia de homens à volta dele sem saber como ajudar. Começou, lentamente, com uma mão a descalçar-se, com a outra continuava a agarrar a pedra que lhe enchia a mão. Terão passado cinco minutos nesta paragem forçada. Foi inevitável: o Capitão, ladeado pelo Silva, chegou-se à frente: " Temudo!  Por que parámos? Levantem o homem do chão!”. A resposta do Feiteirona não se fez esperar: " Ninguém me toque ... quem me tentar levantar leva com esta pedra ... seja quem for ! " 
" O Capitão voltou-se para mim e perguntou: "O que é que ele disse?... O que é que ele disse?" De imediato, referi ao Capitão : "Meu Capitão ... não se preocupe  com isto... nós vamos resolver a situação ... veja como o homem tem os pés ... estão cheios de bolhas..."  O Galhanas veio em meu auxílio e disse: "Meu Capitão .... a gente, aqui com o Furriel, vamos tratar do assunto ... eu vou aliviar o homem (carregar com a arma, as cartucheiras e os cantis)". Então, o nosso Capitão retirou-se. Ora... Vamos resolver ... vamos resolver... mas como?... com os pés com bolhas enormes ...  as meias com buracos ... Pedi ao Siquenique que fosse procurar o Enfermeiro Soares. Entretanto, ele aí  estava... e, com a sua bolsa de enfermagem, aproximou-se do Feiteirona, que o recebeu bem. Uma pomada, umas gases às voltas dos pés, umas meias novas que eu dei (levava sempre dois ou três pares de meias a mais, que pesavam pouco e podiam prestar bons serviços), uns comprimidos, uns goles de água, umas palmadas amigáveis nas costas, um cigarro e aí estava o homem de pé, pedindo logo a arma, que não consentia que alguém a levasse. Ele a coxear, até os comprimidos do Soares para as dores começarem a fazer efeito, estávamos de novo na nossa caminhada como se nada tivesse acontecido. O nosso Capitão nunca se me referiu a este caso posteriormente. Mas voltavam as preocupações com a falta de água e começa a crescer em mim a ansiedade em relação a encontrar a picada que estaria mais perto de ser atingida a cada passo dado. 

Quinta e última horas:
O inferno do calor continua. Pouco passam das 15:00. Desde o início da "Operação"  tínhamos percorrido três tipos de vegetação: mata, de vegetação muito densa; floresta, com por vezes aglomerados de árvores juntas de alturas superiores a dez metros; e selva, com vegetação densa e rasteira de muito difícil penetração, em ambiente muito húmido e escuro onde mal se via o Sol. Em breve ia comer a última lata de atum e também beber a "ucal" que tinha de reserva. Todos nós sentíamos a falta de pão. No início da "Operação" foi distribuído a cada homem, pelo menos, um grande pão casqueiro. Porém, passados dois dias, o pão restante parecia pedra e, de rijo, nem dava para fazer de almofada. Há uns dias atrás o Siquenique, com tristeza, exclamou: "vou aventar o pão ". Vamos caminhando, olhamos para longe  tentando descobrir a picada. A ansiedade apodera-se cada vez mais de mim fazendo crescer a sede. As conversas deixam de ter lugar. Só se pensa na picada. 
Apenas com um quarto de litro de água, vou tentar guardar a que tenho para não aumentar a angústia de me ver sem água nenhuma. O Galhanas segredou-me, apontando para um dos seus dois cantis : " Se vossemecê precisar pode beber uns goles valentes ". Esta boa vontade ficará para sempre na minha memória. Chegara a altura de dar conhecimento ao grupo de uma  dificuldade que teríamos de enfrentar e resolver em breve: no momento em que alcançássemos a picada teria de se saber se seguiríamos para a esquerda ou para a direita dela própria, a fim de encontrar as viaturas que nos aguardavam. E não podíamos contar com a bússola para nos orientar, nesta situação. Teríamos de ser nós a acertar e sem perdas de tempo, para permitir a continuação do andamento "normal" da coluna. O Galhanas logo me tranquilizou: "Não se preocupe... nós não vamos deixar você ficar mal ... confie em nós". O Feiteirona veio ajudar: " Isso para nós é fácil ... não se apoquente ". Após breve conversa resultou o seguinte: ficou entendido que a "queda natural do terreno", em relação à direcção que vínhamos a seguir, era de leve  mas de constante descida da direita para a esquerda, aliás, precisamente semelhante ao local onde as viaturas deixaram o pessoal para o início da "Operação" a pé, que é igualmente o mesmo onde nos aguardarão. Sendo assim, ao interceptarmos a picada, as viaturas teriam de estar para o lado direito dela. Mas poderia suceder que o local da intercepção da picada, que iria acontecer em breve, ocorresse à direita do local de estacionamento das viaturas. Neste caso, ao encontra-la, teríamos de voltar à esquerda, até as localizar. Como saber, então, ao encontrar a picada, se deveremos virar para a esquerda ou para a direita?   Um olhar  de quem "sabe ver e ler" indícios , tais como, e entre outros, a existência de rodados marcados no chão que denunciam a passagem de viaturas e o estado dos arbustos que crescem encostados aos lados da picada que se podem apresentar pisados e danificados após a passagem de um grupo de veículos.
O Primeiro-Cabo Couto aproveitou para trazer para a "mesa das preocupações" uma realidade que havia de ter em conta apesar de "os dados já terem sido lançados": - "Quando chegarmos á picada decerto que as viaturas não estão ali. Só por milagre!  Podemos ter que fazer centenas de metros ou alguns quilómetros na picada até as encontrar. Tudo vai depender da exactidão da navegação feita pelo Capitão até  ao momento de entregar o "serviço" ao Furriel Temudo (queria dizer: o cálculo do azimute a seguir, a partir do cálculo do local onde o Capitão se encontrava naquela altura); e  também depende do "serviço" do Furriel até se encontrar a picada (queria dizer: seguimento do azimute e acertos dos desvios  efetuados - correcção de deriva-)” . Para fazer face á nova situação, resolvi adiantar três homens uns cem metros que, ao darem com a picada, teriam tempo para a verificar no sentido de se prosseguir ou para a esquerda ou para a direita, sem que se perturbasse o andamento da Coluna. Guardei a bússola, pois eles os três, o Galhanas, Feiteirona e Arvanas, com este último à frente, há muito que tinham entendido o sentido do caminho e não tinham dificuldades em efectuar os desvios necessários impostos pelos obstáculos do terreno, com as devidas correcções feitas a "olho". São 16:15 horas, momento em que o Arvanas, ao longe, atira o barrete ao ar, faz piruetas e dá saltos,  anunciando, à sua maneira, que a picada estava à vista. A preocupação de não saber a que distância se encontravam as viaturas não me deixava alegrar. Pedi ao Siquenique que procurasse o Capitão para lhe dar a notícia, bem como dissesse que continuávamos a andar até perto das viaturas. Os três começaram a inspeccionar a picada e resolveram iniciar o caminho pela direita. O que tinha a ser feito estava feito e só nos resta andar e logo se vê. Não mais de seiscentos metros de andamento e o Siquenique deu o alerta: -"já se ouve o barulho dos motores das viaturas! ... estamos perto". Ruído fraco mas logo aumentando à medida que avançávamos. Agora, podia beber o resto da água guardada. Em breve tínhamos as viaturas à vista. Fiz sinal para o pessoal parar. Não foi preciso avisar o Capitão ... já todos sabiam. O Galhanas disse-me em voz alta:  "Quando chegarmos ao Grafanil ... vossemecê vai ter que pagar uma rodada de cerveja ... aqui ao pessoal da Secção". Chegar às viaturas ainda de dia era o objectivo do Capitão, e que foi alcançado.  Agora, ele, o Capitão, transmitia alguns procedimentos a cumprir pelo pessoal que, com rapidez, começava a subir para as viaturas. Muitos aproveitavam, entretanto, para beber água. Confraternizava-se com os condutores-auto que, cheirando a sabonete, apresentavam-se barbeados e com fardamentos limpos. A Operação ainda não tinha acabado. Havia ainda a fazer perto de cem quilómetros até ao aquartelamento do Grafanil. Ao chegar lá tínhamos todos de consultar a Escala de Serviço, pois a guerra continuava. Não fosse ter perdido o relógio, podia dizer que esta "estopada" de sete dias não tinha corrido nada mal. Não ia gastar dinheiro na compra de um relógio novo. Usaria, novamente, o que me ofereceram aos treze anos. Afinal era um bom relógio. Acendi um cigarro e, com um sorriso, pensei: - “Quem sabe se esta noite ainda vou a Luanda comer um bife com batatas fritas e beber umas cervejas? Quem sabe?”

(*) Nota:
Resumidamente:
Usei o significado clássico de Boceta/Bolsa/Caixa de Pandora.
Na Mitologia Grega, Pandora foi a primeira mulher criada por Zeus, destinada a agradar aos homens. Pandora, que tinha todas as graças e belezas, possuía uma caixa oferecida mas que nunca deveria abrir. Um dia, por curiosidade, não resistiu e abriu a caixa. Logo começaram a sair todos os Males que se espalharam pelo Mundo, só ficando, no fundo da caixa, a Esperança.
Queria dizer que o Enfermeiro Soares, ao abrir a bolsa de enfermagem, oferecia logo a esperança de melhoras e tinha lá dentro tudo que era preciso para tratar o pessoal com habilidade e conhecimento.



Fernando Temudo 
2015.