INSÍGNIA E LEMA

INSÍGNIA E LEMA
CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

IDA A MAVINGA - VIAGEM ESPECIAL PARA BUSCAR GRUPOS ESPECIAIS (GE's)

Missão: sair numa Berliet com dois homens da Coutada do Mucusso com destino a Mavinga e voltar no mesmo dia, com o objectivo de trazer para a Coutada do Mucusso um grupo de GE’s(Grupos Especiais), acompanhados das suas mulheres. Acidente a bordo no regresso de Mavinga/ Apontamentos da viagem. Militares designados para a missão pelo Comandante, Capitão, Reis Santana: Furriel Fernando Temudo e Condutor-Auto de Berliet António Costa/ "Ajax". Equipamento: duas espingardas-metralhadoras G3; uma pistola Walther; um mapa; uma bússola; quatro cantis para água; duas mantas; rações de combate. Hora de início do serviço: saída 06:00 horas; tempo previsto para a realização do serviço:10/11:00 horas; tempo real realizado: 11:00 horas. Angola/nas "Terras do Fim do Mundo"/fins do ano de 1969.
A história desta missão que  vou contar pormenorizadamente já se encontra narrada no livro do Mota "FARDA ou FARDO?" em "Um tiro ou ...  dois tiros?  Eis a questão" na página 68 da 1ª Edição.
Na fotografia constante da página 70, do referido livro, pode-se ver 18 homens dos GE’s (Grupos Especiais). Mas eram 19, pois um GE faleceu, por motivo de doença, no dia seguinte à chegada da viagem. Muitos desses homens traziam consigo uma mulher, havendo alguns que se faziam acompanhar de duas, como o Chefe. Seriam umas 15 mulheres, no total 34 pessoas a bordo, sem contar comigo e com o "Ajax". Levavam, cada um, uma "trouxa", contendo roupas, mantas, panelas, tachos, alguidares, jarros para a água, algumas enxadas e catanas, etc. Sem esquecer que cada homem dispunha de uma espingarda Mauser, algumas baionetas, cartucheiras, cantis, etc. Assim, o pessoal vinha amontoado, viajando agachado com as nádegas assentes no piso da viatura e os joelhos juntos ao peito (parecendo de cócoras), ou meio deitados, sofrendo directamente no corpo os efeitos da forte trepidação transmitida pelo piso de ferro da viatura. Iam muito atentos aos arbustos que se debruçam sobre a viatura e que a condução do "Ajax"  não conseguia evitar. Estes, entrando por cima da Berliet, provocavam uma onda de gritos  à sua passagem e, como vergastadas, atingiam e feriam os corpos.   Agarravam-se uns aos outros  para não serem atirados para fora da Berliet, por causa da picada se apresentar em péssimo estado, com um sem-fim de pronunciados altos e baixos, sendo necessário andar o mais rápido possível, não só para tentar complicar a pontaria das armas do inimigo, que nos podia surpreender a qualquer momento, neste percurso reconhecidamente perigoso, mas, também, para evitar chegar à Coutada do Mucusso de noite, atendendo a que naquelas paragens, a partir das 17:15 horas, a noite desce abruptamente, acompanhada de um frio implacável. A picada, com percursos destruídos ou escondidos nas imensas chanas muito alagadas, obrigava, por vezes, a percorrer novos caminhos para a ela se retornar. Por isso, no percurso de ida, tive de recorrer algumas vezes às indicações da bússola para não perdermos o sentido da direcção. Também, este caminho estreito através do mato, apresentava-se demasiado apertado para a passagem da Berliet, devido ao crescimento dos arbustos, que iam fustigando a viatura no seu andamento em ambos os lados laterais. De facto, na grande maioria do percurso, não  passavam lá viaturas há  muito tempo e, sem povoações por perto, mais parecia um caminho no deserto. Havia que enfrentar  uma viagem com trajecto muito longo, de muitas horas, de ida e volta no mesmo dia, com eventuais inesperadas dificuldades, que não permitia, pois, erros de orientação, acrescendo o facto de ser efectuada debaixo de um sol abrasador,  a "peito descoberto", obrigando todos a suportar temperaturas, por vezes, superiores a 50 graus.
Levávamos já horas de viagem naquela terra deserta e, de Mavinga, nada à vista. Começava a ficar preocupado, mais eis que o "Ajax", de repente, exclamou: “meu Furriel, olhe lá ao fundo à esquerda ... aposto em como são  cubatas!”. O meu coração deu um salto, a ansiedade aumentava. Apontou o carro para lá e a meia-dúzia de pontos negros que inicialmente se viam iam crescendo e transformavam-se em cubatas ...   já se viam mulheres a tratar das hortas. É verdade que denotavam receio e surpresa, mas não fugiam. O "Ajax" encostou a viatura a uma jovem que, mostrando os dentes todos, oferecia simpatia e cordialidade. E eu fiz a pergunta fatal: “que terra é esta?”. Naqueles três segundos que demoraram a resposta, o coração explodia no peito, até que ela veio: "É... Maaaviiingaaa". “E o quartel onde fica?”  "Vais... sempre para... ali... aparecem casas de branco... o quartel é casa grande...  olha ... vens de que terra?”... “desse lado ... nunca vem ninguém !". O "Ajax", já com a viatura a começar a andar, disse: “vimos do Céu...  e toma lá esta caixa (embalagem de ração de combate ), que tem coisas boas para tu comeres!”. 
Estava feliz ... encontrámos Mavinga no meio do deserto … conseguimos ! ... conseguimos! ... nós somos fantásticos” !
No quartel, o Oficial-de-Dia, a quem me apresentei, ofereceu-nos refeição na messe e pediu-me para chamar os outros homens que vinham connosco para comerem. Ficou incrédulo quando lhe disse que éramos só os dois, que não  havia mais ninguém. Trataram-nos bem (um abraço para esse valoroso pessoal do Quartel de Mavinga). Não havia muito tempo, ou melhor, não havia nenhum, e o "Ajax" não o perdia, já se levantara da mesa para atestar a viatura e fazer outras verificações. Entretanto, fiquei a assinar umas guias e a receber documentação dos GE’s para entregar na Companhia, ao Primeiro Vilares. Foi-me apresentado o chefe dos GE's e ele pediu-me para quando precisasse de transmitir algo a um GE o fizesse por seu intermédio, uma vez que era o chefe. Concordei e disse-lhe que tinha recebido essas instruções do nosso Comandante, Capitão Santana. 
Logo que me despachei da papelada e me dirigi à Berliet verifiquei que o "Ajax" já tinha tratado de tudo. Quando olhei para a viatura e vi quase 40 pessoas lá em cima, com todo o tipo de tralhas à volta, falei para mim: -“que horror!”
Deixámos o quartel. Olhei para as horas e disse para o "Ajax": estamos adiantados no horário, está a correr bem. Para "cá", viéramos  na maior velocidade possível, mas para "lá", com tanta gente a bordo, a viagem ia demorar mais tempo, pois teríamos de reduzir a velocidade. Mas o futuro é uma "caixinha de surpresas" e estas nem sempre são  boas. 
Aproximadamente no meio da viagem de regresso e a pedido do chefe dos GE’s, tínhamos parado para caçar a fim de arranjar comida  para aquela gente toda. É verdade que havia uma Ração de Combate para cada pessoa. Mas só se a fome fosse muita é que as comiam. O Chefe dos GE’s indicou-me três homens para participarem na caçada. Usando as espingardas Mauser, abateram, com rapidez, três "cabras do mato" que, em seguida, se foram cozinhar. Com a viatura parada, todos estavam alegres e as mulheres de pé cantavam e dançavam, batendo palmas de elogio aos três militares GE’s que participaram na caçada. Era altura de descerem todos do carro. Cada um sabia o que fazer para preparar as cabras e arranjar uma "mesa" no chão, com mantas e panos de diversas cores. Em breve, as cabras, em espetos improvisados, rolavam nas brasas. Só faltava o vinho e esse não iria aparecer. Eu e o Ajax ficámos na Berliet, a comer alguma "coisa" da nossa Ração  de Combate. O apetite não era grande, pois comemos bem na messe do quartel, em Mavinga. Aliviando os nervos, acompanhámos o banquete improvisado de cima da Berliet. O tempo passava depressa. Chegara a hora de partir. A meu pedido, o Chefe dos GE’s deu ordens aos seus para subirem para a Berliet. Depois das mulheres, começavam agora os homens. Estabeleceu-se alguma confusão ocasionada pela falta de espaço para tantas pessoas, que levavam o seu tempo a arranjar lugar para si e seus haveres. O motor da Berliet já "cantava". Um dos três GE’s escolhidos pelo seu Chefe para participarem na caçada foi dos últimos do grupo a regressar à viatura. Com o entusiasmo da caçada, esqueceu-se de retirar a munição da câmara e, ao subir, a "guarda" do gatilho (anel de metal arredondado que resguarda o gatilho da Mauser - espingarda de repetição), entrou num espeto metálico do "resguardo" lateral da Berliet (como um anel entra num dedo). Sem nisso ter reparado, o GE, ao balançar o corpo para subir para a viatura, fez força na arma provocando que o espeto apertasse o gatilho e .... "buuuummmm".... Foi mesmo um azar! 
Nesse momento eu estava sentado no lugar ao lado do condutor e olhava para trás para perceber quando estavam todos acomodados, enquanto o "Ajax", com as mãos no volante, se preparava para arrancar. Reparei no homem a subir para a viatura e vi a espingarda a ficar presa ... mas não houve espaço de tempo para intervir: o clarão imenso a sair do cano, acompanhado de forte estampido, anunciavam a partida do projéctil - a espingarda tinha disparado. Quando aconteceu, a boca do cano da arma perfilava-se na nossa direcção, a aproximadamente 1,40 metros do meu corpo e uns  80 centímetros da cabeça do "Ajax", que,  logo a seguir ao disparo, por motivo do forte estouro, agarrou a cabeça com as mãos nos ouvidos, o que me levou a admitir que pudesse ter sido atingido, tendo logo ido, num salto, ver se havia sangue no seu corpo. Nos primeiros momentos após o disparo o "Ajax" pensou que estávamos a ser atacados pelo inimigo. Imediatamente se ouve muitos gritos, sobretudo das mulheres, enfim, uma balbúrdia do "caraças". O "Ajax", assim que se recompôs, imediatamente arrancou e não mais parámos. Mas … duas  jovens mulheres não paravam de gritar, de chorar, ouvindo-se queixumes de dor, o que levava a antever que tinham sido atingidas. Mas, logo as duas? Andando de joelhos pelo piso da Berliet, por entre uns e outros, aproximei-me da que se encontrava mais perto. Estava meia deitada, encostada à sua "trouxa", com as mãos vermelhas de sangue a apertar a saia junto da perna direita. À sua volta, uma mancha de sangue, lentamente, espalhava-se no chão e,  em seu redor, todos se iam afastando, dando espaço ao sangue para se alargar. Com a minha cara muito perto da dela, olhei os seus olhos que, fitando o infinito, revelavam desespero. Então, afastei-lhe as mãos e levantei a saia ...  logo, um esguicho de sangue irrompeu para o ar, como se fosse um repuxo, intermitente, que acompanhava as contracções do coração; e, a meio, entre o joelho e o quadril, na parte da frente da perna, via-se um buraco parecendo uma cratera profunda, de uns 7 a 8 centímetros de diâmetro, onde a bala saíra. De lado, na parte exterior da perna, notava-se um pequeno orifício, do qual escorria um fio fino de sangue, onde a bala entrara. Não  havia tempo a perder. Arranquei uma tira de pano e, com um galho de arbusto à mão, fiz-lhe um torniquete, na perna, entre o ferimento e perto da linha do sexo. O "Ajax ", que por vezes olhava para trás para ir vendo o que se passava, carregava no acelerador. Tive de lhe gritar, porque não ouvia bem, para que reduzisse a velocidade, pois já havia mulheres atrapalhadas com muitas dificuldades para se conseguirem agarrar ao que podiam para não serem atiradas pelo ar para a picada. Estávamos debaixo de um sol abrasador. A hemorragia estancava quase completamente conforme rodava o galho que apertava a faixa de pano na perna, Apesar das dificuldades do momento, admirava-me como aquela tira de pano e o galho do tamanho de uma esferográfica, usados conjuntamente, funcionavam na perfeição. Mas, havia um "calcanhar de Aquiles": não  podia largar o galho, pois, se o fizesse, a tira de pano desenrolava-se e o sangue corria por ali fora … e lá ia repetindo os procedimentos: desapertando um pouco para permitir que a circulação se fizesse para a perna não morrer, talvez de 15 em 15 minutos, ou de 10 em 10, ou talvez no tempo em que fumava um cigarro. Mas … durante quantos segundos deveria deixar o sangue correr, para apertar novamente?  Essa decisão constituía um martírio para mim. E como arranjava coragem para "lutar contra ela", que ao ver o seu sangue a correr e a perder-se, ficava muito aflita? Era como sentir a sua vida a esvair-se. Por meros instantes ausentei-me dali ... imaginava-me  com outros camaradas de armas a jogar às cartas ... a beber umas cervejas. a rir ... Mas a realidade era outra ... agora, ali, a pesar as minhas decisões em balança de pesos duvidosos, que podiam resultar na vida ou na morte daquela jovem mulher ou na preservação ou perda da perna. Mas estabeleceu-se, entre nós, sem trocarmos uma palavra, uma eficiente colaboração, como que dividindo as responsabilidades a meias: quando sentia a perna muito dormente ou com dores muito fortes, os seus gemidos aumentavam e fazia-me gestos aflitos com as mãos; logo, aliviava o torniquete ... o sangue começava a correr e a circulação da perna a fazer-se; agora, era comigo a decisão de quando devia apertar novamente o galho para estancar o sangue. Já não gritava e os seus queixumes baixos quase não se ouviam, confundidos com o som forte do motor. Continuava  a ouvir gemer a também jovem mulher que seguia meia encostada à protecção traseira da viatura. Todos os outros vinham em silêncio, a não ser quando os arbustos da picada teimavam em invadir a Berliet. Com o passar do tempo, a hemorragia resultava mais controlada pois nos períodos em que aliviava o torniquete o sangue que se perdia vinha sendo cada vez menos. Também já não precisava de ser fortemente apertado como ao princípio. Havia só que repetir os procedimentos até chegarmos à Coutada do Mucusso … e esperar que ela aguentasse até lá ... ainda tínhamos  três horas de viagem pela frente. Conforme o tempo passava o sangue derramado ia ganhando um odor ácido que me provocava vómitos, que reprimia a custo. Mas o que se passava com a outra mulher? Também estaria ferida? Tinha de ir junto dela  para averiguar. Mas como? Não  podia deixar de agarrar o galho. Olhei à volta e pedi em voz alta que um deles, homem ou mulher, me ajudasse a segurar aquele pau milagroso. Imóveis, olhavam-me em silêncio e assim continuaram. Então, sem outra solução, agarrei na mão da jovem ferida e pedi-lhe para agarrar no galho e não o deixar rodar. Ela percebeu e ganhou forças e coragem para o fazer. Comecei a ir até junto da outra, novamente de gatas, para evitar ser atirado para a picada, abrindo caminho a custo por entre os homens, mulheres e tralhas. Quando já me encontrava junto  dela ... não  queria acreditar!?: as suas mãos tinham sangue e, olhando para mim, num choro de dor, levantou a saia ensanguentada e pude ver uma perna muito inchada e na parte de trás da perna, entre o joelho e a coxa, viam-se três orifícios: um pequeno próximo da dobra do joelho e dois maiores, lado a lado, juntos  à nádega. Não se viam lesões, mas seria certo que interiormente houvesse destruições, uma vez que a bala percorreu, por dentro, toda aquela extensão da zona da perna. Dos três orifícios escorriam fios de sangue. Improvisei uma ligadura com uns trapos que encontrei à mão. Não achava explicação para o facto de serem três orifícios de projéctil conquanto deviam ser só dois (entrada e saída da bala). Mais tarde, o "Ajax"  e eu entendemos o que se tinha passado em relação ao trajecto do projéctil dentro da viatura: as duas mulheres foram atingidas com a mesma bala, apesar de estarem longe uma da outra (uma quase à frente da viatura e a outra na rectaguarda). De admirar haver pessoas entre elas … que não foram atingidas. O percurso do projéctil foi este: ao sair da espingarda Mauser seguiu na direcção do volante da viatura, passou junto à cabeça do "Ajax", rente ao seu ouvido esquerdo, fez ricochete no painel dos instrumentos e  inverteu o seu sentido, passando entre o "Ajax"  e mim (que estava sentado no banco ao lado dele), prosseguindo, na Berliet, a uma altura de uns 50 centímetros do piso, agora na direcção do pessoal que, amontoado, se encontravam uns sentados no piso, com as pernas dobradas e os joelhos junto ao peito, e outros sentados, mas meio deitados, encostados às trouxas pessoais; entrou e saiu da perna da mulher em que fiz o torniquete, passou por aquela gente toda e já junto à traseira da viatura entrou e saiu da perna da segunda mulher em quem fiz a ligadura, fez ricochete no resguardo de aço do fundo da viatura (o que se abre e fecha quando se usam mercadorias) e tornou a entrar na mesma perna, onde ficou alojada. Por isso, os três orifícios faziam crer ter havido dois disparos, conquanto só acontecera um. Mas esta realidade, respeitante à bala ter ficado alojada na perna, só a descobriram os médicos operadores do Hospital de Serpa Pinto. Até sabermos esta realidade, o "Ajax " e eu encarávamos o terceiro orifício como um mistério.
 
O Ajax “apertava” a velocidade o mais que podia pois o tempo começava a escassear. Os feridos obrigavam a que chegássemos depressa à Coutada do Mucusso, onde tínhamos médico e enfermeiros e também para fugir à noite que se aproximava. A condução do "Ajax" era a mais veloz possível, mas condicionada a evitar qualquer acidente com a própria viatura e o atirar com o pessoal da Berliet  abaixo. Em todas as condições desfavoráveis desta viagem, o "Ajax", mostrou estar preparado para enfrentar  as diferentes dificuldades que iam aparecendo. Excelente na sua especialidade de condutor-auto, revelou-se um homem rijo, responsável, destemido, determinado e com um encorajador sentido de humor. Foi o companheiro ideal para esta missão poder terminar com êxito. Finalmente, o nosso aquartelamento da Coutada do Mucusso estava à vista. Pedi ao "Ajax"  que levasse a Berliet até à improvisada mas competente Enfermaria, chefiada pelo Furriel  Mineiro, que estava dotada de um Médico. Ao chegar, gritei : "o médico ...  o médico ...  trazemos feridos!". O pessoal cercou a viatura, todos olhavam com curiosidade aquelas trinta e tal pessoas que começavam a descer da Berliet com as suas trouxas e que iam passar a viver connosco. O pessoal de enfermagem rapidamente levou as mulheres feridas para a Enfermaria. Os GE’s e mulheres olhavam com curiosidade para tudo à sua volta. Procurei o Capitão, que estava perto, e contei-lhe o resumo da viagem. Como seu costume, evitava ouvir narrações alargadas, pelo que dei conta dos acontecimentos de maneira resumida, que o não demoraram mais de cinco minutos. Seguidamente, pediu-me para levar junto dele o Chefe dos GE´s, com o qual ficou a falar. A noite estava a cair e o frio a chegar. Na Coutada do Mucusso as amplitudes térmicas eram grandes. Juntamente  com o "Ajax" fomos à barraca/bar beber uma cerveja. Aliás, já íamos na segunda quando o Médico me mandou chamar. Não aceitava a minha descrição do acidente: tinham de ter acontecido dois disparos e não um, como eu dizia. E a contenda instalou-se e não acabava: eu garantia um, o Médico dois. Nenhum de nós cedia e o pessoal juntava-se à nossa volta. O Capitão assistia, de braços cruzados, a esta controvérsia, sem nada dizer. Até que o "Ajax" fez sinal ao Médico, levantando um dedo e dizendo: “um tiro”. Então o Médico retirou-se, mal humorado e não convencido. No dia seguinte as mulheres feridas foram evacuadas para Serpa Pinto, em virtude de a nossa Enfermaria não dispor dos meios necessários para tratar estes ferimentos que obrigavam a operações médicas e transfusões de sangue. Só depois soubemos a confirmação da minha afirmação: os ferimentos das duas mulheres foram provocados pelo mesmo projéctil, confirmando-se, pois, que só tinha acontecido um disparo. Não mais soubemos destas mulheres, até que …
Estávamos em 1970. No ano seguinte terminou a minha prestação de Serviço Militar. Passei à disponibilidade em Luanda, onde fiquei a trabalhar e casei. Em 1974, num passeio com a Mãe dos meus filhos, pelo sul de Angola, num "carocha", passámos por Serpa Pinto, com destino a Sá da Bandeira, onde estudava a minha cunhada. Para mim, regressar a Serpa Pinto era muito especial. Pensava: se pudesse telefonar para o pessoal da Companhia dizia : "vocês não vão acreditar ...  eu estou em Serpa Pinto ... outra vez, nas Terras-do-Fim-do-Mundo ... acreditem!". E vocês agora, leitores, ... acreditam?  Em breve vou mostrar fotografias para vocês as verem. Serpa Pinto estava diferente. Provavelmente, por acção do Major Branco Ló, que agora era o “Comandante  Supremo" de todo o Kuando Kubango, pois era o Governador. As ruas estavam todas alcatroadas. Os carros já não levantavam pó à sua passagem. Havia canteiros com flores espalhados pela cidade, com "Bosquímanos"  a tratar deles a tempo inteiro. Um cinema enorme estava construído e nós fomos ver um filme. De repente, quando passeávamos numa larga rua, parei estupefacto ... pois no passeio do outro lado da rua ia aquela jovem mulher a quem  fiz o garrote, acompanhada de uma outra. Andava devagar, coxeava acentuadamente e precisava do apoio da mão para andar. Continuava uma mulher bonita. Olhou para mim, reconheceu-me, parou uns instantes. A sua cara não me mostrou sentimentos e vi um tímido aceno com a mão, a que correspondi. Continuou no seu lento caminhar até desaparecer na esquina da rua. Ainda hoje me pergunto: por que não atravessei eu a rua e fui falar com ela?


É necessário realçar que toda esta acção, aliás como as demais que envolviam viaturas, só foi e era possível porque os Mecânicos encarregados de zelar pela preparação e manutenção das Berliets e Unimogues eram competentes, zelosos e altamente responsáveis nas suas tarefas, e tinham plena consciência de que o êxito das operações poderia também depender da eficácia do seu trabalho, aliando ainda o alto espírito de grupo que a camaradagem militar impõe dum modo absolutamente natural.

Nota: o Ajax teve conhecimento prévio do conteúdo desta narrativa com a qual concordou em absoluto.

Mavinga
Quartel em Mavinga
Os 18 GE's vindos de Mavinga (um faleceu no dia seguinte, de doença). À frente o único branco, Carlos Jorge Mota. 

Fernando Temudo

Sem comentários:

Enviar um comentário

Agradeço o seu Comentário, que vai ser monitorizado